A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

16 novembro 2010

Os céus olham por mim

Sou uma pessoa de sorte. Quase sempre, quando mais me falta inspiração para escrever, chega-me às mãos por vias diversas algum texto pronto e, mais do que pronto, de tal primor, que não sinto o menor constrangimento de utilizá-lo, pelo prazer de compartilhar com vocês.

Claro que sempre tenho o cuidado de buscar, antes, a permissão do autor que, felizmente, nunca tem me faltado ou, na impossibilidade disto, de mencionar a fonte onde o encontrei.

Pois domingo passado, lendo O Sul, do qual sou assinante desde a sua primeira semana de circulação, li esta crônica do Jornalista Wanderley Soares e já na primeira leitura tive a convicção de que ali estava a minha salvação. Reli e re-reli para ter a certeza de que estava diante de um desses textos que eu gostaria de ter escrito. Mais uma vez os céus olharam por mim. Duvidam? Pois então confiram.

Vando.


A PAZ INTERIOR
Wanderley Soares
Sempre existirá a esperança de sair
a passeio e retornar ao mesmo ninho sem ser assaltado.


O homem era pequeno. Não chegava a ser anão. Um baixinho simpático e feio. É bem verdade que as luzes dos bares noturnos transformam as pessoas. As feias podem se tornar belas e as belas ainda mais belas. Mas aquela luminosidade morrediça não alterava a realidade do homenzinho. Seria, creio, o mesmo, ainda que à luz do sol. Não era velho. Apenas madurão. Mas era feio. Não desses feios insalubres, vampirescos, amarrotados pela poeira do tempo. Era um feio alegre, cheio de dentes, cabeleira vasta que se desguedelhou ao longo da noite. Não o conhecia. Deveria habitar em noites distantes da minha.

Era primavera. Primavera dessas loucas aqui do Sul. Fazia calor. Além disso, o ar condicionado, pifado, fora substituído por ventiladores que distribuíam o ar quente. Nada de importante nisso. Os notívagos chegam perfumados, refrescados pelo banho tomado. Depois, se acostumam com o cheiro da nicotina, do álcool e até mesmo com os pingos de suor alheio. Enriquecendo a festa, o homenzinho estava dentro de um folgado terno azul marinho, gravata com listras largas e oblíquas. No rosto, imensos óculos quadrados que, a toda hora, escorregavam e eram aparados pelas asas do nariz e recompostos com o dedo indicador.

Ele chegou solito, mas não foi longa a sua solidão. Buscou uma mesa próxima à pista. Tinha ares de quem se sentia em casa. Pediu um chope, que tomou sem pressa. Logo encontrou um par. Alegre como ele, pequenina e gordota. Gostaram-se, pois não se largaram mais. Dançaram toda a noite. Paravam só quando a banda parava. Ele afrouxou a gravata e a fralda da camisa lhe aparecia sob o casaco curto. Ela não se desalinhou. Sorria todo o tempo. Ele ria, parava, aplaudia a banda e atirava beijos para o mestre que acariciava os bordões de um violão de sete cordas.

Há quem canta sem saber cantar. Eles dançavam sem saber dançar. Ela a tudo acompanhava. A banda variava de ritmos. Mas nenhum deles era o dos passos dos dançarinos. A música, até vir a atingi-los, passava por um processamento mágico e lhes chegava como melhor a entendiam. Eram muitos os pares, mas eles faziam a festa como se fossem os únicos na pista. Ainda hoje, me foge a certeza se os outros dançantes notaram, como eu, a aparição dos baixinhos. Inclino-me a crer que, para aqueles que não estavam envolvidos na mesma felicidade, os baixinhos eram invisíveis.

A noite se desfazia e o dia já tentava invadir a casa pelas janelas. Os músicos guardavam seus instrumentos. Todos pagaram suas contas e se foram. Tomei eu também o meu rumo sem deixar de ensaiar uma reflexão no entorno da forma liberta com que aquele homenzinho e seu par viveram a madrugada. A paz interior, sonhada e distante, tão real e tão próxima, é ter trabalho e ganho para um terno azul marinho, a certeza da saúde boa, o direito de dançar a sua própria dança em meio a todas as danças. É ter a alegria de sair com a esperança do retorno ao seu ninho, sem ser assaltado, e a certeza de levar um amor no coração.

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Publicado no Caderno Colunistas, página 2, do jornal O Sul, de Porto Alegre, domingo, 14 de novembro de 2010.

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Ilustração: Editada por mim sobre gravura original do site PIXMAC

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