UM SOPRO, UMA BRISA
Que falta nos fazem hoje as rezas de Nhá
Miúda!...
Sapinho, quebranto, soluços, mau
olhado... nada havia que resistisse às rezas e benzeduras de Nhá Miúda. Para
mordida de cobra, picada de escorpião, mijada de aranha, espinha de peixe
atravessada na garganta, o tratamento era reforçado com chás e ferveduras que
só ela sabia fazer, guardiã que era de segredos herdados de gerações
imemoriais.
Nhá Miúda tinha também outras
habilidades, como a de parteira. Chamava de “meu fío” e “minha fía” a todos
aqueles a quem suas mãos hábeis e carinhosas ajudaram a vir ao mundo. E
contavam-se às dezenas. Não havia hora, nem mau tempo, nem distância, que
servissem de empecilho para que ela exercitasse seu trabalho abnegado.
A fama de boa cozinheira corria
de boca em boca. Embora não sendo comum receber visitas, com frequência comentava-se
que fazia bolos de milho, carne de panela e ambrosias “com mãos de fada”.
Ninguém sabia que idade tinha. Apesar
dos passos lentos e das costas levemente recurvadas, o que a obrigava a apoiar-se
se num velho bastão de madeira à guisa de bengala, estava sempre em atividade.
Percorria, sem cansaço aparente, longos trajetos, que mesmo para os mais jovem
já seriam exaustivos.
Cena comum era vê-la carregando
uma cesta repleta de laranjas e bergamotas que distribuía prazerosamente a
todos os que pelo caminho ia encontrando. Não vendia. Dava-as de presente,
apenas. Colhia-as do pomar que ela mesma cuidava e cultivava, no vasto quintal
onde se erguia a velha casa onde morava solitária e tranquila em sua vida
pacata e sem outras atribulações que não fossem as chamadas para socorrer
alguma parturiente da vizinhança.
Pouco conversava e sobre a
família, suas origens, seu passado, jamais falava, talvez porque as pessoas não
ousavam perguntar. Sentiam receio de intrometerem-se em assunto que não lhes
dizia respeito. Negra, poderia ter sido escrava. Quem sabe não o fora?!...
Ama-de-leite... sim, poderia ter sido. Ou aia de uma dama nobre, de alguma
rainha... Ela mesma, embora a idade e a postura um tanto comprometida, tinha
porte de rainha! Teria sido rainha? Onde andariam e quem teriam sido os seus
súditos?
A casa em que vivia não se assemelhava
muito a um palácio. Pouco melhor do que um casebre, mesmo assim era limpa, bem
arrumada, com os móveis apenas suficientes para as suas necessidades. Não era a
proprietária, e supunha-se ser de um filho que ninguém jamais vira nem sabia ao
certo quem era ou se alguma vez existiu. Bondosa, possuidora de extrema
simpatia, rosto onde predominavam os traços de antiga beleza, seu olhar era
franco e inspirava confiança e respeito. Guardava muitos segredos, não somente
sobre a própria existência, como acerca das pessoas que conhecia e com as quais
se relacionava.
De quantas histórias teria sido
testemunha, ou protagonista, ou a personagem principal?!...
...
São passados muitos anos e agora,
não sei por que, a lembrança de Nhá Miúda me veio à mente. Assim. De repente. Sem
mais nem menos.
Posso dizer que a narrativa que
fiz é tudo o que registra, pelo menos em minha memória, a passagem dessa mulher
misteriosa em alguns capítulos esparsos de minha própria história. É a história
singela e sutil, quase um sopro, uma brisa, de quem, como, ela, se perdeu,
anônima, nas brumas de um pretérito quase perfeito, não fosse o seu súbito
ressurgimento.
Quem seria, na verdade, Nhá
Miúda? Que nome teria?!... Josefa, talvez... Ou Genoveva. Ou Anastácia? Quem
sabe... Augusta? Sim, Augusta! Por que
não me ocorreu, antes? Combina muito com ela – nome de rainha.
Quando a vi pela última vez eu não
era nem adolescente. Teria uns dez, onze anos... Não mais. Menos, possivelmente.
A vida sofreu uma ruptura tão instantânea, que eu não percebi que Nhá Miúda, numa fração de segundo, deixou
de fazer parte de uma história que nunca teve início, pois não sei situá-la no
tempo. E que, não tendo meio, nem continuidade, também não teve fim. Ficou
suspensa, atemporal, em algum lugar de nossas origens, à espera de que algum
dia ressurja ainda que envolta por tênue luminosidade.
Vando
* * *
Foto: do site “IMPRENSA BR”
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