Um domingo de primavera.
Wanderley Soares
Não havia ladrões a temer e o cão da casa era um cusco pequeno, sem autonomia para grandes saltos.
O chalé, erguido no centro do terreno, tinha feições modestas e acolhedoras. Era verde e exibia, à frente, um único janelão pintado de vermelho. As portas, nas laterais, davam acesso à sala, à copa e à cozinha. No fundo, um galpãozinho, em forma de meia-água, abrigava o banheiro e servia de depósito de ferramentas e outros trastes. Na lateral, um caramanchão de madressilva. Na frente, um jardim que tinha ao centro um cinamomo ainda jovem sob cuja sombra fora construído um banco tosco de madeira. A cerca era baixinha de ripas estreitas. Não havia ladrões a temer e o cão da casa era um cusco pequeno, sem autonomia para grandes saltos, que se contentava em latir para eventuais passantes desconhecidos.
No fim da infância, no belo início da juventude, ele decidiu partir com uma bagagem de sonhos que desde muito cedo aprendera a plantar. Deixou o jardim, suas flores, a sombra do cinamomo e sua madressilva. Iniciou a jornada que todos um dia tem de empreender. Levava dentro de si aquela força da terra fértil, aquele cheiro do verde vivo, aquela doçura da flor que nasce. Partiu, nunca olvidou disso, num primeiro domingo de primavera. Não marcou nenhum encontro para que, assim, a jornada iniciasse sem amarras. No entanto, não saiu descompromissado. Queria ampliar o seu jardim em algum lugar e, em algum lugar, transplantar e estender o domínio de sua madressilva sem cercados, sem fronteiras.
Estava no centro do sismo, no front, sem nenhuma outra arma a não ser a sua juventude imortal, sua alma não sofrida e seu espírito em chamas permanentes. Mas como não planejara nenhum encontro, não tardou a solidão. Diante dos primeiros revezes, evitava as grandes caminhadas noturnas e lhes apareceram os temores das jornadas do dia. Em meio a tudo, conseguiu construir o seu novo universo, mas teve parte dele destruído. Acostumou com os ruídos de todas as armas e aprendeu a se erguer e a ver e passar com indiferença sobre os corpos dos vencidos estendidos à sua frente. Sentia-se meio bicho, meio homem, mas era assim que conseguia entender e ser entendido pelos sobreviventes seus iguais.
Nos fins de tarde, exilava-se. Recordava o passado que já era maior do que o futuro. E o bom vinho inspirava navegações, alimentava esperanças, gerava sonhos que substituíam os que foram perdidos. Lá fora, visualizava todos em pedaços. Ali, no seu cantinho, a humanidade era reconstruída. E foi com novos sonhos que, numa dessas tardes, ele deixou o exílio e seguiu os impulsos do vinho. Planejou um novo mundo, uma nova forma de liberdade, um novo amor com a vida. Mas, ao ser envolvido pelo sol de uma nova primavera, recém fugitivo do velho inverno, entendeu que tudo o que pretendia era alcançar o chalé verde, a madressilva e o jardim. E ali, sob a sombra do cinamomo ancião, adormecer para sempre num banco tosco.
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Fonte: Jornal O SUL, Caderno “Colunistas”, página 4, domingo, Porto Alegre, 25 de setembro de 2011
Foto: Evandro (Jardim Botânico) – A original está no blog “RETRATOS DO MEU JARDIM”
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