A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

30 novembro 2013

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A aura de dezembro

                                           O pequeno poeta que em mim habitava em mim se perdeu.

   
Locke chegou cedo para a conversa de domingo. Esquecera de se pentear. Nada falei. Desafiava ele ideias malucas. – Meu camarada, começou, com sua voz cavernosa, estou sem norte. Antes de vir para cá, abri a janela e respirei fundo a aura de dezembro. Das compras profanas ao pensamento em Cristo é de dezembro a melhor seiva da primavera. Olhos brilham e mesmo os desgraçados riem para a vida. Medra fácil a paz, o amor, a tolerância, a indulgência. A fome e a injustiça entram em silêncio no canto das bocas. E Cristo de dezembro foi condenado à morte. Afinal, sabia-se dele, por ouvir falar, nascera filho do Espírito Santo, de Maria, cujo companheiro, o carpinteiro José, assumiu a paternidade. Fora fragmentos, seu passado ficou para sempre obscuro. Não teve infância. Seu séquito era a ralé.

Ao falar um pouco com as mãos e outro tanto com a boca, Locke lembrou, em voz alta, a fama de Cristo milagroso, mágico, orador arrebatador de plateias que pregava contra os interesses do Estado e era chamado de rei. – Ah, meu camarada, o pequeno poeta que em mim habitava se perdeu. Acordei para trechos de um conto de Anatole France em que Pilatos, aposentado, um tanto senil, encontrou um amigo com que ele convivera momentos de glória. Perguntou-lhe este amigo se ouvira falar de um taumaturgo chamado Jesus, Jesus de Nazaré que, sob o seu governo teria sido crucificado. Tal amigo fora apaixonado por uma dançarina que abandonara os bordéis para seguir o taumaturgo. Pilatos pensou algum tempo e respondeu: “Jesus? Jesus de Nazaré? Não... não lembro...”

Como em todas as conversas, aos domingos, raramente invadidas por algum anjo mau, à espera do almoço antecedido, acompanhado e sucedido pelo tinto ou pelo verdasco lusitano, houve um silêncio. Locke jamais falava de cabeça baixa e não era um homem de guardar seriedade em tudo. Tinha um sorriso fácil e franco. – Foi isso que aconteceu, meu camarada, quando abri a janela e aspirei a aura de dezembro. Estavam ali animais pastando ao lado de reis ajoelhados e, ao redor, a ralé, sempre a ralé que em tudo se enfia. Cometi um erro, meu camarada. Era a hora da Manjedoura, não era a hora da Cruz. Foi exatamente isso que fez o pequeno poeta que em mim habitava em mim se perder. Como ser Pilatos? Como esquecer essas coisas, meu camarada? Como separar a manjedoura da Cruz?

Wanderley Soares

Caderno Colunistas, pág. 4 - Jornal o Sul, Porto Alegre, RS, domingo, 1° de dezembro de 2013

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Foto: Encontrei esta foto, sem menção do autor, no blog “PINTE E BORDE”

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