A aura de dezembro
O pequeno poeta que em mim habitava em mim
se perdeu.
Locke chegou cedo para a conversa
de domingo. Esquecera de se pentear. Nada falei. Desafiava ele ideias malucas. –
Meu camarada, começou, com sua voz cavernosa, estou sem norte. Antes de vir
para cá, abri a janela e respirei fundo a aura de dezembro. Das compras
profanas ao pensamento em Cristo é de dezembro a melhor seiva da primavera.
Olhos brilham e mesmo os desgraçados riem para a vida. Medra fácil a paz, o
amor, a tolerância, a indulgência. A fome e a injustiça entram em silêncio no
canto das bocas. E Cristo de dezembro foi condenado à morte. Afinal, sabia-se
dele, por ouvir falar, nascera filho do Espírito Santo, de Maria, cujo
companheiro, o carpinteiro José, assumiu a paternidade. Fora fragmentos, seu
passado ficou para sempre obscuro. Não teve infância. Seu séquito era a ralé.
Ao falar um pouco com as mãos e
outro tanto com a boca, Locke lembrou, em voz alta, a fama de Cristo milagroso,
mágico, orador arrebatador de plateias que pregava contra os interesses do
Estado e era chamado de rei. – Ah, meu camarada, o pequeno poeta que em mim
habitava se perdeu. Acordei para trechos de um conto de Anatole France em que
Pilatos, aposentado, um tanto senil, encontrou um amigo com que ele convivera
momentos de glória. Perguntou-lhe este amigo se ouvira falar de um taumaturgo
chamado Jesus, Jesus de Nazaré que, sob o seu governo teria sido crucificado.
Tal amigo fora apaixonado por uma dançarina que abandonara os bordéis para
seguir o taumaturgo. Pilatos pensou algum tempo e respondeu: “Jesus? Jesus de
Nazaré? Não... não lembro...”
Como em todas as conversas, aos
domingos, raramente invadidas por algum anjo mau, à espera do almoço
antecedido, acompanhado e sucedido pelo tinto ou pelo verdasco lusitano, houve
um silêncio. Locke jamais falava de cabeça baixa e não era um homem de guardar
seriedade em tudo. Tinha um sorriso fácil e franco. – Foi isso que aconteceu,
meu camarada, quando abri a janela e aspirei a aura de dezembro. Estavam ali
animais pastando ao lado de reis ajoelhados e, ao redor, a ralé, sempre a ralé
que em tudo se enfia. Cometi um erro, meu camarada. Era a hora da Manjedoura,
não era a hora da Cruz. Foi exatamente isso que fez o pequeno poeta que em mim
habitava em mim se perder. Como ser Pilatos? Como esquecer essas coisas, meu
camarada? Como separar a manjedoura da Cruz?
Wanderley Soares
Caderno Colunistas, pág. 4 - Jornal
o Sul, Porto Alegre, RS, domingo, 1° de dezembro de 2013
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Foto: Encontrei esta foto, sem menção do autor, no blog “PINTE E BORDE”
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