A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

20 março 2011

Leitura dominical - 2

A ÚLTIMA PERÍCIA
Hoje começa o outono, a mais romântica de nossas estações, aqui no Sul. É um dia que lembro da dolorosa solidão dos que vivem sem um Deus.

Encontrava-se na ilusão de não mais se surpreender. Sem medo do inesperado. Lembrava das tantas vezes que caíra e se erguera sem orações, sem a ajuda de Deus. Também os momentos de maior elevação não poderiam lhe causar vertigens nem dores maiores às horas em que esteve ao rés do chão. Afinal, já fora até feliz. Encontrava-se, acreditava, maduro. Entre as suas certezas estava a de nunca aceitar deitar-se exposto na prateleira das antiguidades. Antes deste repouso, seria melhor partir. Sentia-se forte na convivência entre jovens. Ah, esses jovens que pensam saber tudo e morrem jovens sem saber nada. Entre eles, divertia-se em silêncio quando medravam em suas cabeças sismos de sabedoria. As crises não o assustavam. Sob a sua vontade, a todas entendeu ter vencido sem que a sua história mudasse de curso. Nada poderia ser diferente.
Foi assim que ele retornou – lembrou do exorcista – com a sua maleta. Pequena bagagem antiga, companheira silenciosa de tantos anos, da qual não imaginava uma separação, a menos que ela sofresse algum mal irreparável. Ela, não ele.
A casa era pequena. Tinha os cômodos necessários. Estava há quatro semanas da turbulência final. Entrou solitário. Parecia ter deixado lá fora uma pequena multidão na expectativa de sua descoberta. Com cuidadosos passos de perito percorreu a sala com todos os seus olhos. Tudo em ordem. Os móveis simples. A pequena mesa com tampa de mármore, um cinzeiro sem cigarros nem cinzas. Uma estante com livros – O Inspetor Geral, Gogol – leu numa lombada. Sentiu-se um farsante. Esta sensação o envolvia sem raridade. O silêncio não o assustava. Nada o assustava.
Entrou na cozinha. Estranhou o abandono. Nenhum sinal de que ali tivesse ocorrido algum movimento, pelo menos nas últimas semanas. Pó sobre o fogão, armários fechados. O calendário sobre a geladeira estava com três dias de atraso. Numa pequena lixeira, um palito de fósforo queimado. Na área de serviço e no pátio, um aspecto de desolação. Um velho pano de prato balançava no secador. Na casinha do cachorro, desocupada, um pardal pousou assustado com a brevidade dos pardais. Num impulso, quis ver o quarto da menina. Lá, uma emoção dolorosa. Antes, um recanto com tanta vida, nada mais guardava além de móveis ocos. As paredes estavam despidas. Desaparecera a bruxa de pano, presente seu, que com seus grandes olhos verdes, enigmáticos e alegres, por tanto tempo ali esteve em vigília.
Caminhou, agora com passadas largas, pelo corredor que levava ao quarto que fora seu. Encontrou o que pressentira. A cama nua, os roupeiros abertos e vazios. Tudo lembrava um saque. A sua alma saqueada. Restavam apenas os vestígios de seus pedaços dilacerados, sem nenhum calor. Mas ainda tardava o gelo das coisas mortas. Jaziam ali as suas certezas, seus cabelos encanecidos e perdidos, sua ira, seu primeiro verso e o último conflito.
Pareceu-lhe ouvir gritos da multidão que lá fora aguardava pelo seu retorno. Amigos, vizinhos, parentes, gente curiosa que passava e parava. Sangrava o perito. Retornou à frente da casa. Era invisível à multidão. Deixou cair a velha maleta num canto. Sentiu-se assustado e na prateleira das antiguidades. Perdeu a frieza. Era a sua última perícia. Partiu em solidão. A dolorosa solidão sem Deus.
Wanderley Soares
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- O SUL, Porto Alegre, RS - Caderno Colunistas, página 4, domingo, 20 de março de 2011-
- Ilustração do Blog "MY OPERA"

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