A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

16 outubro 2011

Despertar

Hoje estou transcrevendo outra crônica de Wanderley Soares, colunista do Jornal O SUL, que todos os domingos oferece-nos seus textos primorosos. Vez por outra fico com uma inveja danada de seu talento. Ele escreve as coisas que eu queria escrever, mas não sei como. 

Não imagino quantos leitores ele tem. Uma infinidade, certamente. Entre estes eu me incluo e confesso sem nenhum constrangimento ser um de seus maiores admiradores. 

Durante a semana Wanderley escreve sobre temas áridos, relacionados basicamente com a crônica policial. Também leio, superficialmente, passando meio ao largo, já que o tema não me entusiasma de modo algum. Aos domingos, entretanto, ele se transfigura. É quando cumpro o ritual a que já me habituei: sento confortavelmente num recanto bem silencioso do apartamento ou junto à janela, de onde se pode vislumbrar o arvoredo sonorizado pelos sabiás, e saboreio cada frase de seus autênticos poemas em prosa, enquanto me questiono sobre a origem de tantas inspirações. 

Não consigo entender como é que alguém que se liga à árdua tarefa jornalística de registrar assuntos de segurança pública e relatar delitos, crimes, contravenções e chagas de uma sociedade em estado visível de decomposição cadavérica, consegue, de repente, fluir com inigualável talento, temas transcendentais de tamanha beleza.  

Já surrupiei outros, dele, transcrevendo-os anteriormente. Se continuar assim, Wanderely Soares vai terminar sendo presença constante em “Nós Aqui”, o que me envaidece, mas ao mesmo tempo, preocupa: e se ele decidir cobrar cachê? Como é que fica? Se isto ocorrer, já antecipo a solução. Vocês vão ter que me ajudar a levantar os recursos necessários. É. Uma “vaquinha” entre a Família. Tudo em nome de uma boa causa. Fica aí a sugestão.  

De qualquer modo, enquanto ele não se manifesta, vamos curtir as suas crônicas dominicais e deliciarmo-nos com a sua poética. Se não o lêem no “O SUL”, ofereço-lhes a oportunidade áurea de degustar o que ele escreve, aqui no nosso blog de circulação universal, já que somos lidos por blogueiros e internautas do mundo inteiro. Sem a menor modéstia. Graças a Deus. 

Vando

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Foto minha - da Série "Portais"
Tirada no dia 2-Set-2011
A viagem de retorno
Wanderley Soares
A vida na nascente não tem fim
Enfim, acordou. Deveria ser madrugada, talvez um fim de tarde. A luz seria da Lua cheia ou do Sol. Bem depois, muito depois, soube que aquele momento sucedera três anos após seu nascimento. Ao acordar, sentiu-se um rei sem saber o que era um rei, sentiu-se Deus sem saber o que era um deus. Sentiu-se gente e isso era a sua primeira verdade, mas que ele não a entendia assim ainda. Sabia apenas que estava na eternidade. Seria para sempre igual como a luz que começava a observar, fosse da Lua, fosse do Sol. Nada poderia mudar, pois estava pronto, perfeito. A vida na nascente não tem fim e talvez tenha sido essa a primeira ilusão que ele mesmo viria a contestar. Nem rei, nem Deus, nem eternidade
Havia uma escola com corredores e salas enormes, colunas majestosas, escadaria íngreme, um pátio imenso e uma professora muito alta e de olhos fascinantes que tudo sabia. Uma multidão barulhenta de imortais iguais a ele corria por todos os espaços e se escondia atrás de árvores gigantes que, assustadas, derramavam sombras, flores e folhas como num pranto, como numa gargalhada. O pátio tinha espaços que não lhe poupavam as pernas e muito lhe custava chegar de lado a lado numa correria cujo destino desconhecia, mas procurava. Um xerife maluco com um apito aterrorizante pedia silêncio, pedia que todos parassem. Queria ordenar tudo em silêncio, pois sua idéia de ordem era o silêncio
Em casa, sua mãe, como a professora, era uma criatura que também tudo sabia. O pai, de bigodes de fartos pelos e uma calvície avançada, parecia-lhe ter nascido no Brasil colônia, coisa que começava a aprender o que era com a sábia professora de olhos fascinantes. Seu cachorro tinha o tamanho de um tigre. Num élan, nunca soube exatamente quando começou a acontecer, sentiu-se maior e, a cada dia, sempre maior. E todo o seu universo passou a diminuir. As árvores, os pátios, as escadarias se apequenaram. O rei já não existia, o tal Deus lhe fugia entre os dedos das mãos. A vida não era mais eterna como a sentira em sua nascente. Desfizeram-se alguns sonhos e surgiram-lhe os primeiros pesadelos
Um dia, resolveu voltar ao lugar onde acordara. Queria experimentar um novo entardecer, uma nova madrugada. Descobriu, então, definitivamente, em sua viagem de retorno, que a vida não era eterna, que a professora não tinha olhos fascinantes e que nem tudo sabia, que as árvores não eram gigantescas. Entendeu que tudo lhe parecera imenso porque ele era pequeno no seu amanhecer para a vida. No entanto, ao se defrontar com seu mundo real, bem longe da nascente que fez dele um rei, um Deus, todas as coisas que para ele pareceram imensas, agora, por menor que fossem, ainda eram maiores do que ele, pois trituravam, impiedosamente, todos os seus sonhos. Sentiu-se velho, insignificante
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Transcrito do Jornal O SUL / Caderno Colunistas, pág. 4 - Porto Alegre, Domingo, 16 de Outubro de 2011.

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