LEMBRANÇAS DA MINHA ALDEIA
Vez por outra sou surpreendido
pela lembrança de lugares, pessoas e circunstâncias que mesmo sem serem
evocados conscientemente, brotam com espontaneidade de épocas que pareciam
definitivamente esquecidas. São cores, aromas, paisagens, sons… São pessoas,
nomes, jeitos. São lugares e cenários nos quais, em algum momento, nesta ou talvez
em outra existência estive inserido.
É em ocasiões assim que se mesclam aquilo que eu vi ou com que convivi; coisas que apenas se anexaram ao subconsciente por terem sido contadas ou referidas por alguém; ou que li, que ouvi dizer, mas das quais tenho noção quase perfeita, embora tenham ocorrido em situações que nem sempre correspondem em seus tempos e espaços aos meus próprios espaços e tempos.
Soam-me, por exemplo, com indescritível deleite, nomes de lugares, alguns tenebrosos, como o Largo da Forca, outros apenas misteriosos como a Ilha das Pedras Brancas e a Ilhota. Mas são os logradouros antigos, como Rua da Ladeira, Rua da Imperatriz, Rua da Olaria, Alto da Bronze, Rua do Arvoredo, Praça do Portão, Rua de Bragança, que chegam aos meus ouvidos como pura poesia. Ah!... e a Rua da Margem – esta, sim, que conheci como a palma da mão, pois era onde moravam a Tia Isolina e as bisas, que me tratavam com carinho muito maior do que aquele que dedicavam ao velho gato angorá, membro da família desde épocas imemoriais.
Mas além da Rua da Margem (João Alfredo, atual), há outras recordações de coisas reais, que me chegam, não sem nostalgia, por terem feito parte do meu cotidiano desde tenra idade até os instantes em que a vida colocou compulsoriamente diante de mim a necessidade de trilhar novos caminhos. Como as missas dominicais na Igreja do Rosário, os passeios na Redenção, a música dos realejos, o bolo-inglês, o quindim e o papo-de-anjo da Confeitaria Rocco, com os quais, até pelos dez ou onze anos, eu me empanturrava, acompanhados do leite gelado servido num copo imenso... E mais tarde, já na época de enfrentar o mundo com os meus próprios recursos, dos cartazes dos filmes seriados do Coliseu, do bonde, altas horas, iluminado, contornando a Praça Quinze em direção ao abrigo para logo depois perder-se na noite, até algum fim-de-linha bucólico...
Todavia são pessoas, na maior parte das vezes, que revejo, como nesses sonhos que, ao acordar, a gente tem certeza de que os vivemos e que foram reais. Foram tantas!...
Hoje, em particular, recordo uma delas. Foi dos meus cinco ou seis anos, até por volta dos anos 1950. Era uma figura magnífica pela qual eu nutria venerável admiração. Todos o conheciam por “Bataclã”. Recentemente, através do blog “Porto Alegre, Uma História Fotográfica”, do médico e blogueiro Ronaldo Marcos Bastos, descobri, finalmente, que Bataclã se chamava Cândido José dos Santos. Fiquei sabendo também que ele faleceu em 1990, com 94 anos.
Não asseguro que a descrição que faço seja fidedigna, mas é a imagem que dele eu tinha em minha visão infantil e que até hoje guardo. Era um homem negro, alto – pelo menos é o que me parecia – e tinha o porte de um gentleman, não apenas pela postura, mas principalmente pela fina educação de que era possuidor. Cortês, sabia sorrir com um sorriso imenso. Mesmo quando sério e compenetrado, de suas feições irradiava-se a beleza de uma alma resplandecente da luz mais cristalina.
Sempre trajado com aristocrática elegância, seu vestuário impecável, com terno, gravata, chapéu, sapatos bem lustrados e bengala constituíam a marca de sua figura atraente e cavalheiresca que atraía a atenção e o respeito de todos. Os que correspondiam à sua saudação, instintivamente o faziam com reverência.
Quem era Bataclã? O que fazia quando não o estávamos vendo? Onde morava? Sou incapaz de dizer. Sempre que com meus pais o encontrávamos ele estava fazendo "reclames", que era como se chamava, então, a propaganda feita na rua. Anunciava produtos para os lojistas do Centro – circulando principalmente pela Rua da Praia. Mas Bataclã era “multimídia”, pois lembro de tê-lo visto, algumas vezes, correndo pelo centro, descalço, vestindo apenas um calção, sem que eu entendesse o motivo de tal performance.
Durante a infância e parte da adolescência presenciei e apreciei o trabalho que ele realizava com perfeito domínio e desenvoltura e que já fazia parte do cenário da Cidade. O tempo passou. Cresci, mudei para outras cidades, conheci outras gentes, vivenciei novas experiências. Certo dia voltei. Não mais encontrei Bataclã na Rua da Praia. Nem em qualquer outro lugar. Aos poucos, sua imagem foi se desvanecendo. E sem a presença física, sua figura e demais lembranças também se desvaneceram em minha memória. Somente muito tempo depois do regresso para Porto Alegre é que, numa tarde qualquer, circulando pelo Largo dos Medeiros, emergiu em minha mente o vulto quase etéreo daquele personagem que foi tão estimado e que, com o decorrer dos anos, eu havia relegado ao esquecimento.
Soube, então, que ele já havia partido. Não andava mais por ali. Como aconteceu, não sei. Preferi imaginar apenas que ele desmaterializou-se, simplesmente, como os gênios costumam fazer. A elegância marcante de sua presença luminosa desprendera-se deste plano indo ressurgir brilhante em outras dimensões. Foi chamado, com certeza, para algum ponto deste nosso Universo que estava carente de alegria e de gente bonita.
É em ocasiões assim que se mesclam aquilo que eu vi ou com que convivi; coisas que apenas se anexaram ao subconsciente por terem sido contadas ou referidas por alguém; ou que li, que ouvi dizer, mas das quais tenho noção quase perfeita, embora tenham ocorrido em situações que nem sempre correspondem em seus tempos e espaços aos meus próprios espaços e tempos.
Soam-me, por exemplo, com indescritível deleite, nomes de lugares, alguns tenebrosos, como o Largo da Forca, outros apenas misteriosos como a Ilha das Pedras Brancas e a Ilhota. Mas são os logradouros antigos, como Rua da Ladeira, Rua da Imperatriz, Rua da Olaria, Alto da Bronze, Rua do Arvoredo, Praça do Portão, Rua de Bragança, que chegam aos meus ouvidos como pura poesia. Ah!... e a Rua da Margem – esta, sim, que conheci como a palma da mão, pois era onde moravam a Tia Isolina e as bisas, que me tratavam com carinho muito maior do que aquele que dedicavam ao velho gato angorá, membro da família desde épocas imemoriais.
Mas além da Rua da Margem (João Alfredo, atual), há outras recordações de coisas reais, que me chegam, não sem nostalgia, por terem feito parte do meu cotidiano desde tenra idade até os instantes em que a vida colocou compulsoriamente diante de mim a necessidade de trilhar novos caminhos. Como as missas dominicais na Igreja do Rosário, os passeios na Redenção, a música dos realejos, o bolo-inglês, o quindim e o papo-de-anjo da Confeitaria Rocco, com os quais, até pelos dez ou onze anos, eu me empanturrava, acompanhados do leite gelado servido num copo imenso... E mais tarde, já na época de enfrentar o mundo com os meus próprios recursos, dos cartazes dos filmes seriados do Coliseu, do bonde, altas horas, iluminado, contornando a Praça Quinze em direção ao abrigo para logo depois perder-se na noite, até algum fim-de-linha bucólico...
Todavia são pessoas, na maior parte das vezes, que revejo, como nesses sonhos que, ao acordar, a gente tem certeza de que os vivemos e que foram reais. Foram tantas!...
Hoje, em particular, recordo uma delas. Foi dos meus cinco ou seis anos, até por volta dos anos 1950. Era uma figura magnífica pela qual eu nutria venerável admiração. Todos o conheciam por “Bataclã”. Recentemente, através do blog “Porto Alegre, Uma História Fotográfica”, do médico e blogueiro Ronaldo Marcos Bastos, descobri, finalmente, que Bataclã se chamava Cândido José dos Santos. Fiquei sabendo também que ele faleceu em 1990, com 94 anos.
Não asseguro que a descrição que faço seja fidedigna, mas é a imagem que dele eu tinha em minha visão infantil e que até hoje guardo. Era um homem negro, alto – pelo menos é o que me parecia – e tinha o porte de um gentleman, não apenas pela postura, mas principalmente pela fina educação de que era possuidor. Cortês, sabia sorrir com um sorriso imenso. Mesmo quando sério e compenetrado, de suas feições irradiava-se a beleza de uma alma resplandecente da luz mais cristalina.
Sempre trajado com aristocrática elegância, seu vestuário impecável, com terno, gravata, chapéu, sapatos bem lustrados e bengala constituíam a marca de sua figura atraente e cavalheiresca que atraía a atenção e o respeito de todos. Os que correspondiam à sua saudação, instintivamente o faziam com reverência.
Quem era Bataclã? O que fazia quando não o estávamos vendo? Onde morava? Sou incapaz de dizer. Sempre que com meus pais o encontrávamos ele estava fazendo "reclames", que era como se chamava, então, a propaganda feita na rua. Anunciava produtos para os lojistas do Centro – circulando principalmente pela Rua da Praia. Mas Bataclã era “multimídia”, pois lembro de tê-lo visto, algumas vezes, correndo pelo centro, descalço, vestindo apenas um calção, sem que eu entendesse o motivo de tal performance.
Durante a infância e parte da adolescência presenciei e apreciei o trabalho que ele realizava com perfeito domínio e desenvoltura e que já fazia parte do cenário da Cidade. O tempo passou. Cresci, mudei para outras cidades, conheci outras gentes, vivenciei novas experiências. Certo dia voltei. Não mais encontrei Bataclã na Rua da Praia. Nem em qualquer outro lugar. Aos poucos, sua imagem foi se desvanecendo. E sem a presença física, sua figura e demais lembranças também se desvaneceram em minha memória. Somente muito tempo depois do regresso para Porto Alegre é que, numa tarde qualquer, circulando pelo Largo dos Medeiros, emergiu em minha mente o vulto quase etéreo daquele personagem que foi tão estimado e que, com o decorrer dos anos, eu havia relegado ao esquecimento.
Soube, então, que ele já havia partido. Não andava mais por ali. Como aconteceu, não sei. Preferi imaginar apenas que ele desmaterializou-se, simplesmente, como os gênios costumam fazer. A elegância marcante de sua presença luminosa desprendera-se deste plano indo ressurgir brilhante em outras dimensões. Foi chamado, com certeza, para algum ponto deste nosso Universo que estava carente de alegria e de gente bonita.
Vando
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CRÉDITOS / A foto com que ilustro esta postagem, bem como o texto abaixo transcrito, são do blog “PORTO ALEGRE,UMA HISTÓRIA FOTOGRÁFICA”, publicados em 17 de dezembro de 2011.
“Certamente uma das maiores figuras populares de Porto Alegre foi o Bataclã. Na verdade, Candido José dos Santos nasceu em Santa Catarina em 1896 e veio para a cidade em meados da década de 20. Aqui atuava como propagandista ambulante pelas ruas do centro e cidade baixa. Não foi camelô, pois não vendia produtos, mas andava com cartazes pendurados no pescoço fazendo propaganda de lojas e mercadorias. Além disso, aproveitava o contato com a população para fazer apologia do vegetarianismo e do exercício físico diário como forma de saúde e longevidade. Não era raro vê-lo pelas ruas, apenas com calção e correndo descalço. Uma figura inesquecível. Devia estar certo pois trabalhou até meados da década de 80 e faleceu na cidade que adotou em 1990, aos 94 anos.
O jornalista Marcelo Campos realiza uma pesquisa sobre a trajetória de Bataclã. Será sem dúvida um belo trabalho que virá enriquecer a galeria destas figuras que o tempo apagou.”
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