MÍSTICAS – 46
“Aqui está, Amigo, minha casa vazia e
meu cheio coração: é o quanto resta, após a tempestade da véspera.
Durante muito tempo, reuni objetos que
a convenção valorizou, e de ornamentos inundei o lar, fazendo-o deslumbrante e
belo.
Muitas vezes desejei deter o sol
triunfante, para que minhas águas se doirassem ao seu beijo, quando seus raios
desciam a mirar-se no lago do meu quintal. Todavia, fagueiro ele corria pelo
céu, e, ocultando-se, fazia-me chorar de emoção, ao vê-lo emoldurando nuvens
brincalhonas.
Vezes outras, roguei à pálida virgem
da noite descesse seus cabelos de prata, e os umedecesse nas pétalas do meu
roseiral. No entanto, ei-la no lago, a deslizar nas águas paradas,
despedaçando-se sob as rodas do carro do vento.
Às aves do arvoredo, supliquei sempre
cantassem à janela do meu quarto, despertando-me com o gorjeio das suas vozes
canoras. Mas, quando as tive perto, no peitoril da janela, tornei-me ladrão,
roubando-lhes a liberdade, para sempre as ouvir cantar... e, daí por diante, sempre
estiveram a chorar a perda do céu sem fim e do arvoredo musical, que a brisa
oscula e a noite acalenta.
Tudo quis, nada tive.
Quando, porém, a dor de muitos chorou
à minha porta, qual tempestade de desesperos, dei todos os objetos, ornamentos
e valores que a humana condição venera...
E libertei-me da rapina, libertando as
aves.
A dor dos estranhos me falou tanto,
que me fiz mendigo, rico que fui, para dar.
E agora que chegas, Amigo, tu a quem
amo... Somente posso oferecer-te minha casa vazia e meu cheio coração, eu que
antes era dono de uma casa cheia e de um vazio coração.”
* * *
(De “Filigranas de Luz”, Rabindranath
Tagore, psicografia de Divaldo Pereira Franco, “LEAL”, Salvador Bahia, 1986,
páginas 74 e 75).
Ilustração: do blog de NAYARA RODRIGUES
Nenhum comentário:
Postar um comentário