Começo o mês publicando a crônica de um
dos colunistas que muito respeito, embora algumas restrições naturais
decorrentes de posições com as quais, nem sempre, compartilho. Todavia,
aprecio-o bastante, o que atesta outras belas páginas dele que tenho publicado
aqui.
Chamou-me a atenção, principalmente, as
armadilhas da língua que espreitam aqueles que escrevem, ou se expressam oralmente,
e nem sempre estão atentos. Ao final ele resume a sua tese, com absoluta
propriedade, mencionando um fato atual que de algum modo atingiu a nós todos.
Mas... vamos à crônica.
Vando
Apenas,
excelência?
Havia palavras que ele não considerava inimigas,
mas que procurava não cultivar com elas uma aproximação maior.
O universo real, segundo me falava
Frosch, não difere de sonhos e pesadelos. Ocorre estarmos a cismar sobre sonhos
ligeiros que, narrados, durariam dias. Aquele velhinho na Índia morreu com 124
anos e dele se pode dizer que viveu 124 anos. Nada mais. Ali, naquele lugarejo,
viveu um mulatinho que morreu de apoplexia aos 24 anos e deixou duzentas
composições musicais. Assim são as coisas oníricas, assim é o mundo real.
Frosch, ao falar, viajava sem rumo definido e contava que as pessoas, na sua
fluidez, são como palavras amigas e, outras, ele não considerava inimigas. No
entanto, não negava antipatia por alguns vocábulos, como antipáticos são alguns
vizinhos com quem cordialmente falava. Para Frosch, tudo se resumia a sonhos e
pesadelos. As palavras e as pessoas. A vida.
Sobre as palavras que envolviam sonhos
e pesadelos, Frosch dava exemplos daquelas com a quais guardava, com carinho,
um leal distanciamento, sem magoá-las. Uma das que me marcaram e sobre ela até
palestras fiz, é "ainda". Frosch recomendou-me que não a tivesse como
inimiga, mas nunca como companheira amiga. Deu-me algumas indicações nada
complicadas, sem conotações pré ou pós modernas, como aquele encontro entre
dois velhos amigos que há muito não se viam e um deles perguntou: "Ainda
estás com a Ursulina? - Teus pais ainda estão vivos? - Ainda és caixa do Banco
do Brasil?". Ora, Ursulina, feiosa, sempre foi o grande amor do velho
amigo, cujos pais eram provectos donos de uma pousada no Morro dos Conventos e
ele era caixa laureado do Banco do Brasil.
Lembrei de Frosch, das palavras e das
pessoas amigas e outras não inimigas quando li as ponderações de um
desembargador que decidiu pela liberdade de um grupo acusado de envolvimento na
morte de 242 jovens no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria. Tudo
judiciosamente correto e explanado com máxima clareza à luz da lei e da
magnanimidade do ilustre togado. No entanto, o magistrado, sem recorrer a
Frosch, sobre quem sequer ouviu falar, na justificativa de sua decisão disse:
"Hoje, passados quatro meses, o abalo vai se dissipando. Perdura apenas a
dor dos familiares, amigos, namorados e dos sobreviventes". Falei com
Frosch sobre o pesadelo e ele, num salto, sem que eu pudesse contê-lo, passou a
repetir: "Apenas, excelência... apenas, excelência, apenas,
excelência?...".
Wanderley Soares
*
Jornal O SUL, Porto Alegre, RS,
domingo, 2 de junho de 2013
Foto: Site do JORNAL GRANDE BAHIA,28/01/2013
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