A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

21 julho 2013

Divagações invernais


O feiticeiro
Quando, nos meus invernos, sinto o açoite dos predadores que, sob o pálio imprevisível da Justiça dos homens, ocultam o sol da verdade, lembro destas divagações que há alguns anos publiquei.
    Mesmo para os filhos da boa sorte, o inverno, o nosso inverno aqui do Sul, é nostálgico. Em nossas peregrinações noturnas já não encontramos as mesmas pessoas, e mesmo nas tardes de domingo há uma tendência para a clausura. À cerveja alegre bebida à sombra, sucede o vinho circunspecto dos ambientes fechados. É verdade que o sol de inverno é generoso para o nosso corpo, mas é raro. Seguem-nos, mais amiúde, os dias escuros, as nuvens carregadas, as noites sem astros, as tempestades que assustam. O inverno chega como um velho feiticeiro. Sua figura tem algo de sinistro, mas contém uma mansidão insondável e um brilho pungente nos olhos.
    Para os filhos da má sorte, o inverno chega como um invasor hostil e invencível. Suas legiões não poupam nem o corpo, nem a alma. Nem mesmo chega a ter os movimentos esotéricos do feiticeiro. É, simplesmente, um feitor com poderes de verdugo. A vontade maior é a de fugir, é de ocultar-se para evitar o açoite dos ventos frios. Nos presídios, nos becos, nos cortiços, chega com força maior tecendo pesadelos ao expulsar os ratos de seus ninhos para que invadam os corredores dos desgraçados. Há pouco lirismo no universo dos desabrigados. Resta a eles, ao agasalho do álcool barato, enroscar-se como cães vadios e sonhar com a primavera.
    Com formas e forças diferentes, a teia tecida pelo inverno aprisiona as criaturas. É dolorosa a decisão de partir quando o arvoredo não abriga, mas ameaça, quando as águas estão profundas e barrentas, quando os dias fogem entre as fantasias das nuvens e as noites não têm fim. A partida fica no desejo. É melhor aguardar o sol pleno. São poucas as pessoas que, em fuga, desaparecem. Os adolescentes sentem suas fraquezas, as crianças são vencidas pelos seus temores e até mesmo os loucos não vagam tanto pela cidade. Estranhamente, o inverno hostil torna as pessoas mais próximas entre si, inspira uma nova tentativa de ficar ou de voltar.
    Ainda que agasalhados, o inverno nos leva ao sopé de uma montanha alcantilada entre o belo e o tenebroso. Inevitável a aventura não escolhida. Lembramos, então, nossos invernos mais ternos, quando não foram muitas as tempestades. Percorremos mais o belo do que o tenebroso sob uma brisa gelada e mansa. Assim, creio que devemos viver o outono, a caminho da montanha, confiando que seremos bem protegidos do silêncio dos olhos do feiticeiro. Se forem fortes as tempestades, fiquemos juntos para que os nossos corpos sejam abrigo de nossos corpos, para que não gelem as nossas almas. Sejamos, pelo menos, sob o inverno, animais pacíficos.
Wanderley Soares
Jornal O SUL / Porto Alegre, Domingo, 21 de Julho de 2013.
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Crédito da foto: Andreia Debon
Jornalista, editora do jornal Bon Vivant.

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