O
feiticeiro
Quando,
nos meus invernos, sinto o açoite dos predadores que, sob o pálio imprevisível
da Justiça dos homens, ocultam o sol da verdade, lembro destas divagações que
há alguns anos publiquei.
Mesmo
para os filhos da boa sorte, o inverno, o nosso inverno aqui do Sul, é
nostálgico. Em nossas peregrinações noturnas já não encontramos as mesmas
pessoas, e mesmo nas tardes de domingo há uma tendência para a clausura. À
cerveja alegre bebida à sombra, sucede o vinho circunspecto dos ambientes
fechados. É verdade que o sol de inverno é generoso para o nosso corpo, mas é
raro. Seguem-nos, mais amiúde, os dias escuros, as nuvens carregadas, as noites
sem astros, as tempestades que assustam. O inverno chega como um velho
feiticeiro. Sua figura tem algo de sinistro, mas contém uma mansidão insondável
e um brilho pungente nos olhos.
Para
os filhos da má sorte, o inverno chega como um invasor hostil e invencível.
Suas legiões não poupam nem o corpo, nem a alma. Nem mesmo chega a ter os
movimentos esotéricos do feiticeiro. É, simplesmente, um feitor com poderes de
verdugo. A vontade maior é a de fugir, é de ocultar-se para evitar o açoite dos
ventos frios. Nos presídios, nos becos, nos cortiços, chega com força maior
tecendo pesadelos ao expulsar os ratos de seus ninhos para que invadam os
corredores dos desgraçados. Há pouco lirismo no universo dos desabrigados.
Resta a eles, ao agasalho do álcool barato, enroscar-se como cães vadios e
sonhar com a primavera.
Com
formas e forças diferentes, a teia tecida pelo inverno aprisiona as criaturas.
É dolorosa a decisão de partir quando o arvoredo não abriga, mas ameaça, quando
as águas estão profundas e barrentas, quando os dias fogem entre as fantasias
das nuvens e as noites não têm fim. A partida fica no desejo. É melhor aguardar
o sol pleno. São poucas as pessoas que, em fuga, desaparecem. Os adolescentes
sentem suas fraquezas, as crianças são vencidas pelos seus temores e até mesmo
os loucos não vagam tanto pela cidade. Estranhamente, o inverno hostil torna as
pessoas mais próximas entre si, inspira uma nova tentativa de ficar ou de
voltar.
Ainda
que agasalhados, o inverno nos leva ao sopé de uma montanha alcantilada entre o
belo e o tenebroso. Inevitável a aventura não escolhida. Lembramos, então,
nossos invernos mais ternos, quando não foram muitas as tempestades.
Percorremos mais o belo do que o tenebroso sob uma brisa gelada e mansa. Assim,
creio que devemos viver o outono, a caminho da montanha, confiando que seremos
bem protegidos do silêncio dos olhos do feiticeiro. Se forem fortes as
tempestades, fiquemos juntos para que os nossos corpos sejam abrigo de nossos
corpos, para que não gelem as nossas almas. Sejamos, pelo menos, sob o inverno,
animais pacíficos.
Wanderley Soares
Jornal
O SUL / Porto Alegre, Domingo, 21 de Julho de 2013.
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Crédito da foto: Andreia
Debon
Jornalista,
editora do jornal Bon Vivant.
Publicada no blog
MORANGOS, ORQUÍDEAS, LAVANDA...
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