As asas dos morcegos
A igualdade era tida como retórica chã, coisa da população
Na falta de histórias minhas,
narro as que foram ou são a mim contadas ou por outras pessoas vividas e que,
ao acaso, chegam a minha praia. Lembro, pois, de Roant. Ele tinha pouca
afinidade com as letras. No entanto, seu verbo vertia fácil e cristalino como a
água que jorrava fina de fontes que, durante a minha infância, via brotar entre
as pedras junto ao pé de uma montanha e matava a minha sede. Roant dividia o
mundo em duas partes separadas por um rio. Contava-me que lá os juízes togados
estavam acima dos nossos. Julgavam as elites e organizavam os tribunais das
castas inferiores. Ainda lá, a ideia de que, perante a lei, todos os homens
eram iguais fora abolida e apenas lembrada como os proscritos princípios de
divindades. A igualdade era tida como retórica chã, coisa da população
Como o poder daqueles juízes
vigorava nos dois lados, construídos por Roant e que o rio separava, as gentes
que do lado de cá viviam passaram a entender como natural e até justo e
perfeito o que se derramava das vozes empedernidas daqueles vultos forrados de
cetim negro, de cabeças bem penteadas ou lustradas e que, ao final de cada
culto, retiravam-se abanando as capas, como asas de morcegos, numa dança que
não se sabia se os levavam para um manjar com Deus ou com o Diabo. O certo é
que um deles, Deus ou o Diabo, a eles outorgava tais propriedades que a mesma
estrela que dos dois lados do rio era vista, ostentava-se sempre mais radiosa
no lado de lá. E assim ungido por mistérios, o lado de lá se projetava
esotérico, inalcançável, intocável, invencível.
Não havia rancor em Roant. Seu
espírito era leve e como habitante do lado de cá dizia que quando julgamento
houvesse, seu sonho era o de que todos fossem julgados por seus iguais. Ainda
que existindo o rio, os dois lados teriam juízes escolhidos de tal forma que
aquela estrela chegasse com luminosidade igual tanto para a corte como para a
população. Ele até construía uma alegoria fundada na irresponsabilidade dos
poetas. Dizia que toda a mulher que levasse um poeta a morrer de amor deveria
por poetas ser julgada. E nesse julgamento valeria toda a prepotência dos
poetas. Os defensores defenderiam, mas os acusadores acusariam a vítima.
Haveria o princípio de que deveriam ser defendidas todas as formas de fazer
morrer por amor. Seriam abolidas a hipocrisia e as asas dos morcegos.
Wanderley Soares
* * *
Transcrito do Jornal O SUL - Porto Alegre,
Domingo, 15 de Setembro de 2013 – Caderno Colunistas, página 4
Ilustração: foto do Site “ESBOÇANDO IDÉIAS”
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