A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

15 setembro 2013

Crônica de domingo

As asas dos morcegos
A igualdade era tida como retórica chã, coisa da população
Na falta de histórias minhas, narro as que foram ou são a mim contadas ou por outras pessoas vividas e que, ao acaso, chegam a minha praia. Lembro, pois, de Roant. Ele tinha pouca afinidade com as letras. No entanto, seu verbo vertia fácil e cristalino como a água que jorrava fina de fontes que, durante a minha infância, via brotar entre as pedras junto ao pé de uma montanha e matava a minha sede. Roant dividia o mundo em duas partes separadas por um rio. Contava-me que lá os juízes togados estavam acima dos nossos. Julgavam as elites e organizavam os tribunais das castas inferiores. Ainda lá, a ideia de que, perante a lei, todos os homens eram iguais fora abolida e apenas lembrada como os proscritos princípios de divindades. A igualdade era tida como retórica chã, coisa da população
Como o poder daqueles juízes vigorava nos dois lados, construídos por Roant e que o rio separava, as gentes que do lado de cá viviam passaram a entender como natural e até justo e perfeito o que se derramava das vozes empedernidas daqueles vultos forrados de cetim negro, de cabeças bem penteadas ou lustradas e que, ao final de cada culto, retiravam-se abanando as capas, como asas de morcegos, numa dança que não se sabia se os levavam para um manjar com Deus ou com o Diabo. O certo é que um deles, Deus ou o Diabo, a eles outorgava tais propriedades que a mesma estrela que dos dois lados do rio era vista, ostentava-se sempre mais radiosa no lado de lá. E assim ungido por mistérios, o lado de lá se projetava esotérico, inalcançável, intocável, invencível.
Não havia rancor em Roant. Seu espírito era leve e como habitante do lado de cá dizia que quando julgamento houvesse, seu sonho era o de que todos fossem julgados por seus iguais. Ainda que existindo o rio, os dois lados teriam juízes escolhidos de tal forma que aquela estrela chegasse com luminosidade igual tanto para a corte como para a população. Ele até construía uma alegoria fundada na irresponsabilidade dos poetas. Dizia que toda a mulher que levasse um poeta a morrer de amor deveria por poetas ser julgada. E nesse julgamento valeria toda a prepotência dos poetas. Os defensores defenderiam, mas os acusadores acusariam a vítima. Haveria o princípio de que deveriam ser defendidas todas as formas de fazer morrer por amor. Seriam abolidas a hipocrisia e as asas dos morcegos.
Wanderley Soares
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Transcrito do Jornal O SUL - Porto Alegre, Domingo, 15 de Setembro de 2013 – Caderno Colunistas, página 4
Ilustração: foto do Site “ESBOÇANDO IDÉIAS”

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